Modelo de compartilhamento de risco ganha espaço no Brasil como estratégia para tornar o sistema de saúde mais justo, sustentável e centrado no paciente.
“As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso”, disse Santos Dumont — e a frase do patrono da aviação brasileira nunca foi tão atual para quem trabalha com inovação em saúde. Em tempos de tratamentos de alto custo, pressão por resultados e escassez de recursos, o setor vem buscando soluções ousadas e persistentes para viabilizar um cuidado mais inteligente e efetivo. É nesse cenário que o modelo de risk sharing, ou compartilhamento de risco + valor, vem ganhando força no país.
“O risk sharing é uma forma de parceria entre quem paga pelo tratamento — como planos de saúde ou o SUS — e quem oferece a tecnologia, como laboratórios ou hospitais. Se um medicamento ou terapia não trouxer o resultado prometido, a empresa assume parte do prejuízo”, explica Gabriela Tannus, economista, especialista em acesso e inovação em saúde, diretora do IBRAVS – Instituto Brasileiro de Valor em Saúde e CEO do GTannus Group. Segundo ela, a compensação pode vir de diversas formas: devolução de valores, nova rodada de tratamento ou outros acordos previamente definidos. O objetivo é simples: o sistema só deve pagar pelo que, de fato, funciona.
Esse tipo de contrato é uma das estratégias dentro do modelo mais amplo de saúde baseada em valor, que busca priorizar a qualidade dos desfechos em vez do volume de procedimentos. “O que diferencia o risk sharing é justamente essa aposta conjunta no resultado: se der certo, todos ganham. Se não, os riscos também são divididos”, afirma Gabriela.
Mais do que uma inovação contratual, o modelo é uma ferramenta poderosa para garantir a sustentabilidade do sistema de saúde. “Quando a gente paga apenas por aquilo que realmente funciona, evita desperdícios e garante um uso mais inteligente dos recursos — que são sempre limitados. Isso é especialmente importante em tratamentos caros, como os de câncer ou doenças raras”, diz.
Os números reforçam a urgência dessa mudança. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), de 20% a 40% dos gastos em saúde no mundo são desperdiçados por ineficiência, uso inadequado de tecnologias, tratamentos ineficazes e má coordenação dos cuidados. No Brasil, um estudo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) estima que R$ 28 bilhões por ano são desperdiçados na saúde suplementar, especialmente por fraudes, exames desnecessários e terapias sem efetividade comprovada. Já no setor público, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou que 30% dos recursos podem ser desperdiçados por má gestão, falta de controle e políticas ineficientes.
Aplicável ao SUS e à saúde suplementar
Segundo Gabriela, o modelo pode ser implementado tanto no setor público quanto no privado, mas os contextos são bem distintos. No SUS, há barreiras regulatórias, como exigências legais e dificuldade de monitorar os resultados em tempo real. Já na saúde suplementar, há mais flexibilidade para negociação, mas também mais fragmentação entre operadoras, prestadores e fornecedores. “Cada um tem seu desafio, mas o modelo pode funcionar nos dois lados”, ressalta.
Apesar do potencial, a adoção em larga escala ainda esbarra em entraves estruturais e jurídicos. “Faltam dados organizados, é difícil acompanhar os resultados dos pacientes ao longo do tempo e precisamos de contratos mais claros e seguros. Mas já temos bons sinais de que é possível avançar”, afirma. Para ela, o Brasil está no início dessa jornada e precisa investir em sistemas de informação, confiança entre as partes e um ambiente regulatório que incentive, e não impeça, a inovação.
LGPD e foco no paciente
Outro ponto de atenção é a proteção de dados clínicos, especialmente à luz da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados. “Todo modelo de risk sharing precisa cuidar muito bem dos dados dos pacientes. Isso significa garantir anonimato, pedir consentimento quando necessário e ter regras claras sobre quem pode acessar o quê”, explica Gabriela. Segundo ela, esse cuidado é essencial para que os modelos funcionem sem ferir direitos e com segurança jurídica.
Mais do que garantir acordos financeiros, é preciso que o modelo gere valor real para o paciente. “Esse é o ponto central. O foco precisa estar nos resultados que importam na vida real: melhora dos sintomas, mais tempo de vida com qualidade, menos internações desnecessárias”, reforça. Por isso, Gabriela defende que os contratos devem ser desenhados com participação dos profissionais de saúde e, sempre que possível, com escuta ativa dos próprios pacientes.
Avanços no Brasil e aprendizados globais
Algumas experiências brasileiras já começam a servir de referência, especialmente em áreas como doenças raras, oncologia e dispositivos cardiovasculares. Gabriela destaca o papel do IBRAVS como articulador desse movimento: “O IBRAVS vem reunindo especialistas, operadoras, indústria e pesquisadores para debater e testar formas de colocar o valor no centro da atenção à saúde. É uma construção coletiva, passo a passo”.
A especialista também observa que países como Inglaterra, Itália e Canadá já utilizam o risk sharing para lidar com terapias de alto custo, com base em evidências robustas e sistemas bem estruturados de monitoramento. “O Brasil pode aprender com essas experiências que não basta ter um bom contrato — é preciso ter estrutura para acompanhar resultados e corrigir rotas. E que o paciente precisa estar sempre no centro da conversa”, pontua.