Fabio Nogi aponta os entraves culturais, estruturais e tecnológicos que freiam a adoção do VBHC na odontologia suplementar — e alerta para os riscos de manter o modelo atual.
A promessa de uma odontologia mais resolutiva e centrada no que realmente importa para o paciente avança lentamente no setor suplementar. Conceitos como saúde baseada em valor (VBHC), desfechos clínicos e medidas autorrelatadas ganham força em outras áreas, mas na prática odontológica ainda prevalece um modelo fragmentado, focado no volume de procedimentos e com baixa integração entre os atores.
Com mais de 20 anos de atuação na saúde suplementar, Fabio Massaharu Nogi, Superintendente de Inovação e Odontologia na Seguros Unimed, analisa os entraves que travam a transformação do setor — e o que está em jogo se ela não acontecer.
O modelo tradicional e o desalinhamento cultural
Segundo Nogi — que também é diretor da SINOG, conselheiro consultivo do IBRAVS, membro do conselho da Yuni Digital e professor de MBA e pós-graduação —, a odontologia suplementar está somente começando sua jornada rumo ao VBHC. O modelo vigente ainda recompensa volume, não valor.
Para que ocorra uma mudança significativa, é preciso repensar contratos e formas de remuneração, fortalecer a articulação entre operadoras, prestadores e pacientes, e investir em tecnologia capaz de gerar e analisar dados de desfecho com consistência.
“Mais do que ferramentas, falta alinhamento estratégico e cultural. É necessário engajar todos os atores em um novo propósito, que vá além da entrega de procedimentos e coloque o bem-estar e a experiência do paciente no centro”, afirma.
Medir o que importa: o papel dos desfechos e da experiência
No campo dos indicadores, o AOHSS (Adult Oral Health Standard Set) reúne métricas clínicas e autorrelatadas (PROMs), abrangendo dor, estética e impacto psicossocial. Também se destacam instrumentos como OHIP e OIDP, voltados à qualidade de vida relacionada à saúde bucal.
“Esses indicadores captam o impacto real das condições bucais na vida das pessoas, indo além do aspecto clínico e incluindo dimensões emocionais e sociais”, diz Nogi. No entanto, ele reconhece que o uso ainda é incipiente no Brasil.
Para que ganhem tração, é preciso alinhar incentivos e mostrar, na prática, os benefícios tanto para profissionais quanto para pacientes. “Sem perceber valor, nenhum dos dois irá se engajar.”
Além disso, as ferramentas precisam ser adaptadas ao contexto brasileiro — com linguagem acessível, aplicabilidade local e integração ao fluxo assistencial.
Da coleta de dados à ação: desafios para dar voz ao paciente
Coletar PROMs e PREMs não se resume a aplicar questionários. Para Nogi, trata-se de incorporar a perspectiva do paciente no processo de cuidado, o que exige infraestrutura tecnológica, capacidade analítica e uma mudança de mentalidade.
Esse amadurecimento é essencial num cenário cada vez mais moldado por dados e inteligência artificial. “Sem ouvir o paciente, os profissionais perderão protagonismo frente à tecnologia.”
Transformar essa escuta em ações concretas implica revisar processos, redimensionar o que se entende por sucesso clínico e redesenhar modelos assistenciais com foco na individualização.
Confiança: o cimento dos modelos baseados em valor
A transição para o VBHC depende da construção de confiança entre os atores do sistema, sustentada por quatro pilares:
- Definição conjunta de metas e indicadores, promovendo alinhamento e corresponsabilidade;
- Modelos de ganho compartilhado, que incentivem o foco nos desfechos;
- Relações colaborativas entre operadoras e prestadores, substituindo o viés fiscalizatório por práticas como revisão conjunta de casos;
- Cultura de experimentação, com pilotos e ciclos curtos de melhoria.
“Sem espaço para testar e ajustar, corremos o risco de paralisar diante da complexidade da mudança”, afirma Nogi.
Qualidade percebida: o primeiro passo do Triple Aim
Entre os três objetivos do Triple Aim — melhorar o cuidado individual, a saúde populacional e reduzir custos —, Nogi defende que o primeiro deve ser prioridade na odontologia suplementar.
Só a entrega de cuidado percebido como valioso pelo paciente cria engajamento e estabelece a base para metas populacionais e ganhos de eficiência. Ignorar essa etapa compromete a sustentabilidade de qualquer transformação.
Personalização em escala: o futuro possível
Historicamente, a padronização guiou os modelos de cuidado na odontologia suplementar. Com o avanço da tecnologia, torna-se possível personalizar — em escala — o cuidado, a partir de perfis clínicos específicos e interações com outras condições de saúde.
“Pacientes com diferentes graus de periodontite podem ter planos de cuidado distintos, com metas específicas e conexões com doenças sistêmicas, como diabetes”, exemplifica Nogi.
Essa diferenciação deve refletir também na remuneração: “o ideal é que a complexidade e os resultados orientem o pagamento.”
Mais do que repetir protocolos, o desafio será criar fluxos assistenciais dinâmicos e responsivos, que conciliem integridade clínica e individualização.
Educar o paciente é parte da transformação
Muitos pacientes ainda associam valor a acesso rápido e cobertura ampla. Para que o modelo de valor avance, será preciso educar o público sobre o que realmente significa cuidado de qualidade: menos procedimentos desnecessários, mais prevenção, melhores desfechos e bem-estar no longo prazo.
Esse processo exige uma comunicação clara, contínua e ancorada em exemplos práticos. O paciente precisa ser parceiro ativo — não apenas receptor de serviços.
Valor exige cultura, colaboração e governança
O maior obstáculo à disseminação do VBHC é cultural. “Ainda há receio de romper com modelos antigos, mesmo com tecnologias e frameworks já disponíveis”, afirma Nogi.
Romper essa inércia exige uma agenda coletiva com participação de operadoras, prestadores, entidades de classe e órgãos reguladores, como a ANS.
Além disso, é preciso evitar o erro de tratar o VBHC apenas como um novo modelo de pagamento. Trata-se de uma transformação sistêmica, que atravessa a organização do cuidado, o papel do paciente e a governança dos sistemas.
“Valor não é custo. É o que de fato importa para o paciente”, conclui.