A promessa de um cuidado preventivo, mais inteligente e menos fragmentado, tem ganhado força na discussão sobre Value-Based Health Care (VBHC) no Brasil. Em um sistema ainda guiado majoritariamente por modelos de remuneração por evento (Fee-for-Service), os modelos populacionais surgem como alternativa para romper com a lógica reativa e promover um cuidado que antecipa o adoecimento. Mas até que ponto esse modelo é viável, especialmente em um país com sistemas tão fragmentados quanto o Brasil?
Quando se fala em modelos populacionais baseados em valor, segundo Eduardo Maia — sócio fundador da SAS (Soluções Avançadas em Saúde) e Diretor Geral do Hospital Municipal Oceânico Gilson Cantari, em Niterói (RJ) —, mais do que tecnologia ou infraestrutura, é preciso transformar o desenho dos contratos, os incentivos financeiros e, sobretudo, a cultura do sistema.
Prevenção: o elo fraco dos modelos por evento
Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cada dólar investido em prevenção gera uma economia de quatro dólares no sistema de saúde. Ainda assim, os modelos baseados em evento tendem a ignorar as prevenções primária e secundária, justamente por não haver receita atrelada a algo que ainda não aconteceu.
“No melhor cenário, os pagamentos por eventos remuneram a prevenção terciária e quaternária, exatamente devido ao impacto econômico em menor prazo”, explica Maia.
Nos modelos populacionais, o raciocínio se inverte: a população é composta majoritariamente por pessoas saudáveis ou assintomáticas, e os eventos agudos deixam de ser receita para se tornarem custo operacional. Quanto mais eventos evitáveis forem reduzidos, melhor o desempenho. “Tantos eventos evitáveis de curto quanto de longo prazo fazem parte do escopo desse modelo. Isso é tanto mais apropriado quanto mais duradouro for o contrato.”
A solução, diz ele, está no desenho inteligente da remuneração. “É preciso balancear os objetivos de curto e longo prazo. Critérios como cobertura vacinal ou controle de hemoglobina glicada são desfechos substitutos que podem ser utilizados para valorizar a prevenção, mesmo quando seus resultados levarem anos a aparecer.”
Quando a eficiência vira suboferta
Um dos principais riscos dos modelos populacionais com foco em eficiência é que se transformem em mecanismos disfarçados de contenção de custos. Sem o monitoramento adequado de desfechos, pode haver desassistência.
O caminho é progressivo: é preciso incorporar métricas, ferramentas de mensuração e mecanismos de ganho compartilhado que orientem o comportamento dos atores para o Quadruple Aim. A satisfação do paciente, nesse contexto, é um critério mínimo de segurança contra o risco de suboferta.
“Contratos sem um componente variável e sem métricas que assegurem, no mínimo, a não inferioridade em relação ao FFS — especialmente quanto à satisfação do paciente — são consideravelmente mais vulneráveis à ocorrência de desassistência. Ainda assim, esse risco tende a ser menor quando há uma boa avaliação do prestador por parte dos pacientes”, explica.
Fragmentação não é desculpa
Maia afirma que modelos populacionais com pagamento por valor são viáveis mesmo em sistemas fragmentados como o brasileiro. A chave está nos incentivos. “Uma arquitetura de incentivos que prestigie economicamente a resolução de desperdícios estimula a integração da cadeia de valor.”
Segundo ele, não há nenhum incentivo para que um prestador busque o resultado de um exame feito recentemente em outro serviço. “São milhões de exames laboratoriais, de imagens e pareceres repetidos, absolutamente redundantes e fúteis, que consomem os recursos do sistema sem agregar valor nenhum para o paciente. Pense nos dados de saúde ocupacional, desperdiçados em sua quase totalidade por quem busca aplicar a lógica da gestão de saúde a um grupo populacional.”
A integração, como em qualquer outro setor da economia, torna-se uma vantagem competitiva. Quem busca melhorar margens passa a buscar eficiência.
Accountability compartilhada: quebra de paradigmas
Para que a responsabilidade por desfechos seja compartilhada entre prestadores e operadoras, é preciso repensar os modelos de relação.
“A matemática de soma zero — onde um ganha o que o outro perde — é, segundo os economistas, a raiz do desperdício, da retenção econômica, dos litígios e, consequentemente, da desconfiança e da resistência”, afirma Maia.
Ele propõe construir modelos que alinhem interesses: “Todos ganham com a saúde, a satisfação e a comerciabilidade dos planos; todos perdem com a doença, o sinistro e a insatisfação. É esse alinhamento que viabiliza a sustentabilidade de longo prazo.”
Nesse sentido, o conceito de payvider (provider + payer) traduz não apenas um novo modelo de remuneração, mas um novo modelo de negócio, baseado em cocriação entre as partes.
Outro ponto relevante é que os modelos populacionais no mercado privado brasileiro se enquadram no que se convenciona chamar de “inovação disruptiva”. Segundo Clayton Christensen, professor de Harvard e autor da teoria, as inovações mais transformadoras costumam surgir nas bordas do sistema — e não no centro, onde o status quo tende a resistir e sufocar mudanças.
Para Christensen, é nas periferias, onde há menos recursos, menos status e menos atenção, que existe mais espaço para experimentar.
As recomendações, então, são: comece pequeno e pela periferia; estruture um modelo payvider (preferencialmente com prestadores ou operadoras que já tenham alguma experiência); pilote uma operação, aprenda com os resultados e, então, expanda o modelo.
Sem dados, sem valor
Um dos maiores desafios para os modelos populacionais é a ausência de dados longitudinais e de interoperabilidade. Mas, para Maia, isso não pode ser desculpa para a imobilidade.
“O ótimo é inimigo do bom. A interoperabilidade é um ideal, mas historicamente nunca foi impeditivo para a gestão em saúde no mundo. O que falta é uma cultura de análise longitudinal, praticamente inexistente nos relatórios de sinistros por eventos (fee-for-service)”, afirma.
O primeiro passo está no uso inteligente dos dados já disponíveis nas operadoras. “Mesmo sem interoperabilidade, é possível atribuir vidas, estimar carga de doença e identificar desperdícios. A questão não é tecnológica, mas cultural.”
Segundo Maia, a evolução virá de forma progressiva. “Com o tempo, a troca de dados econométricos e epidemiológicos entre os parceiros gera conhecimento e oportunidades — inteligência — para o payvider, ampliando sua capacidade de identificar e resolver desperdícios. A infraestrutura se desenvolve como consequência natural do ganho de escala e do espaço orçamentário gerado pela eficiência da operação.”
Mais do que um modelo assistencial, o cuidado populacional por valor é um convite à maturidade do sistema: pensar em saúde como estratégia de longo prazo, e não como soma de eventos isolados.